Um conto frustrado

Vocês conhecem aquela IDÉIA da Revista Piaui que traz uma frase para que os leitores encaixem em um conto.....pois é. Eu vi a frase"...e escondeu um punhado de cânfora no tanque de sua Harley" e pensei, vou tentar. Escrevi e mandei. Só que o prazo havia terminado dia 20.
Então, já que está escrito, publico aqui e não na Piaui.
MOTO BOY
Harley, quando adolescente, tinha apelido de Caloi. Isto era devido à sua grande vontade de ter uma bike, assim como o Maycon, o Wesley, o Wemerson e outros amigos tinham.
Ele só queria deixá-la descer a Rua Pamplona, cem por hora, cabelo ao vento, gente jovem reunida. E faze-la reluzir nos finais de semana, lustrando-a na porta de casa, com seu bermudão florido, enquanto ouvia elepês dos Beattles e flertava com a Daiane Caroline que pintava as unhas de azul na janela em frente.
Mas a vida ficou dura para o Harley. Ele teve que largar a escola e arrumou um emprego temporário como office boy. Sua casa recendia a cânfora, pois sua mãe, Elizabeth, sempre colocava nas caixas junto às roupas das madames para as quais ela costurava. Era sua marca registrada.
Seu pai, Gilberto, tinha alma de artista mas como sofria de artrite crônica, não podia se dedicar às artes. Trabalhava meio período numa agência dos correios e o outro meio período, para a indústria cinematográfica, dublando filmes pornô, o que o deixava engrandecido. Nas conversas com os amigos, ele sempre omitia seu emprego nos correios.
Com o tempo, Harley conseguiu ter uma Honda 120 e começou a trabalhar como moto boy para uma confecção de roupas íntimas. Seu trabalho consistia em entregar as peças já cortadas, cuecas para sermos exatos, nas oficinas de acabamento, onde eram costuradas, bordadas ou estampadas, conforme o design do estilista que Harley trazia junto. Ele gostava da oficina pois o cheiro de cânfora que ali havia fazia com que ele se lembrasse de sua mãe, coitadinha, morta com uma bala perdida na frente da padaria, às 7 horas da manhã de um sábado do ano anterior.
Para passar o tempo e, talvez, por ter herdado a alma de artista de seu pai e não a artrite, ele começou a desenhar modelos de cuecas e a sonhar com o dia em que teria uma griffe com seu nome: "Cuecas Harley". Seu preferido era o que tinha o desenho da motocicleta homônima, em toda a extensão da roupa, sendo que o tanque se encaixava perfeitamente na parte da frente onde está a parte mais reforçada da peça. Era a sua MOTO. Ele não era a Caloi, era a Harley.
Tomou coragem um dia e trocou o desenho que levou, junto às partes de tecido para costurar, por aquele que considerou sua obra prima.
Não conseguiu dormir naquela noite. Sonhou com o dia seguinte. Viu-se chegando na oficina, um alvoroço fora do comum. Costureiras, diretoria, imprensa, polícia, churrasquinho de gato, baiana do acarajé, todos em clima de jornal das sete na TV. Entrou por uma porta lateral, sem ninguém perceber, vestiu correndo a cueca "... e escondeu um punhado de cânfora no tanque de sua Harley" talvez por saudades da mãe.
Montou na sua Honda e saiu em louca velocidade pelo trânsito que, neste momento, acusava um congestionamento de 321,5 km em São Paulo. Na Consolação, cortou pela direita o ônibus Aeroporto-Perdizes e não sentiu mais nada. Nem acordou.
E então não deu tempo de cozinhar. Acabamos em pizza.